sábado, 19 de dezembro de 2009

Olha, passou!

É tudo tão temporário e não tinha eu dado por nada. Pensando que tinha, nunca tive coisa nenhuma. O poder sobre mim própria é tão relativo e ameaçador. Sinto que não tenho vontade sobre a própria vontade. E que vontade é essa que só se lembra de mim quando o rei faz anos? Razão tem ela, que eu tenho o agir de uma beata: só me lembro dela quando preciso. E são poucas as vezes quando o rei faz anos.

Quando passa o agora e volta, depois, o que passou?

agora sim, agora não,
por quantas vezes ja passou por mim o vento
tempo sim, tempo não
a vida é-me um passatempo.


(Quando falo em vontade sobre a própria vontade, refiro-me à vontade que sempre existe em mim, à vontade de sonhos, de algo demasiado grandioso, imaterial e permanente. Mas, a vontade que se sobrepõe a esta, é uma vontade material, preguiçosa, que me faz sentir vergonha e culpa, porque depende da conduta observavel, de modo a concretizar o não observavel.)



quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Eu e eu ou Eu e o outro?


Querer pouco é de gente medíocre.

Querer muito é de gente estúpida.
Dizem.

Querer mais que muito é de quem?
"Ser melhor" discute-se-me com "Ser a melhor" e eu tenho necessidade de dar caminho livre para ambas avançarem.


Before I die I want to change the world.

Foi este o pensamento que se me surgiu por volta dos meus 10(?)anos e que, embora antes não tivesse dificuldades em tê-lo sempre presente comigo, hoje foi o primeiro dia em que senti insegurança a esse respeito e tive mesmo de arranjar uma corda para o prender a mim.
Segundo a teoria desenvolvimentista, é na fase adolescente que a criança sente que pode fazer a diferença e mudar o mundo. Contudo, refere-se a esse sentimento como uma mera caracteristica específica (!) dessa fase, ou seja, ocorrerá quase que necessáriamente uma crise para uma posterior e permanente noção menos fantasiosa do mundo real. Por outras palavras, a transição para a fase adulta requer, embora que gradual e supostamente nao abrupto, um descuramento do que somos enquanto realização pessoal e inocente, devido ao bem-estar molar do que nos rodeia, para passar uma realização pessoal, que se preocupa com o bem-estar molecular, do indivíduo apenas, que curiosamente considera apenas os interesses de soberania egoista.
Ora, o curioso da questão é que, por um lado, se observa um regresso ao egoísmo (que existia anteriormente nas fases sensorio motora e preformal piagetianas), embora este tipo de egoismo tenha um teor de ambição maior e seja distinto do primeiro; e, por outro lado, esse egoismo interage com o auge da capacidade de abstracção que se verifica na fase adulta, a fase formal.

Nota: Devemos, contudo, ter em conta que possuir grande capacidade para, neste caso a abstracção, nao significa que se conquiste esse auge. Assim sendo, um adolescente ou até mesmo uma criança mais nova podem apresentar maior descentraçao ou tomada de perspectiva cognitiva referente a uma pessoa, contexto ou situação específica, comparado com um adulto cognitivamente mais capacitado.

sábado, 3 de outubro de 2009

Kohlberg, 1980

“Virtudes não há muitas.
Uma apenas:
a justiça”

“Virtude é uma.
É o conhecimento do bem.
Quem conhece o bem, escolhe o bem.”

“Alcançar a virtude
é pôr questões,
não dar respostas.”

Moral não é sinónimo de Normativo

“A educação moral
não é encher a pessoa
de conhecimentos que não tinha,
mas promover-lhe o raciocínio moral”

Kohlberg, 1980, p.26


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Eu não sou o livro que leio, sou o que penso sobre ele.
Ter não é ser, já dizia Erich Fromm.
Não temas se me derem a conhecer o mal, porque o mal sou eu que o construo.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Os Outros sou Eu

Os outros sou Eu.
Quando penso que estou a ser influenciada pelos juízos alheios estou antes a ser influenciada pela critica que o meu Eu faz do que vai conhecendo, do que me vou mostrando a mim mesma, porque é esse Eu o verdadeiro observador, o que é omnipresente e, curiosamente, omnisciente - e, por isso, julga quem me mostro ser, os meus pensamentos e comportamentos, mesmo quando me não encontro com ninguém.
Não, a educação não faz de mim quem sou.

O que não existe existe em nós

O Amor é a verdade que desaparece quando a verdade aparece.

domingo, 5 de julho de 2009

O dia tem tem mil sóis


O que faz nascer o dia diz-me que vou ser a rainha do mundo.
O que avisa que se vai esconder paralisa-me. Porque é o mais belo de todos, o que menos tempo dura e o que mais atenção lhe consinto. São cinco minutos que lhe dispenso, vinte, trinta e já era. É o único que muda a cor do vestido a cada cinco minutos e nenhum é mais belo que outro; todos lhe assentam de forma singular. É uma pintura que só cabe na tela que o campo da visão alberga e que volta a ser pintada todos os dias, mais ou menos à mesma hora, porque a memória não a consegue guardar sem lhe ser infiel à beleza.
E só eu o consigo ver, porque não está ao alcance de mais nenhuma janela senão da minha.

domingo, 28 de junho de 2009

Tampouco tempo

Tenho tão pouco tempo!
O que estou eu a fazer aqui sentada
Em vez de correr lá para fora e procurar
Viver tudo intensamente. Fico parada,
Por mim, deixo a vida passar.

Tenho tão pouco tempo…
De que me serve pensar no futuro ansiogénico,
Se, pensando permito que ele não chegue nunca,
Chegando. A toda a hora, efémero.
Vá, não faças obséquio, não demores em passar. Finda.

Tampouco…
Em que é que o introvertido pode ser mais feliz que o extrovertido?
Se o extrovertido é, antes, introvertido, é afortunado.
Mas que fortuna tem o fado
Do apenas introvertido?

Tem tempo de ser introvertido quando morrer, ora.

Cala-me

Se disser coisas bonitas e ficar feia
É porque penso indecente.
A língua mente.
E o nariz é de madeira.

Quando eu contrario, não vás
Por onde eu verbalizo.
Atrás do que fantasio,
Vê o que escondo, que se não fica atrás – é isso que é bonito.

Só vejo a cor da minha caneta depois de escrever.
Não me importa se não ensinar nada.
Aprenderás se quiseres.
Eu farei o mesmo. Se quiser.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A diferença entre o ser e o ser.

A diferença entre o ser-se humano e o ser um animal, por exemplo uma galinha, vem do poder / não poder. Eu não posso querer ser uma galinha, porque não sou dotada do ser que é a galinha, qualidade essa que lhe é instintiva, é a sua biologia. Assim, para ser o que sou, é porque eu tenho essa possibilidade (ou essa ordem?) e, assim sendo, o livre arbítrio que sou é o instinto que o determina.
Posto isto, então o que é superior ao ser humano é a própria natureza. Ser-se pensante é ser-se natural? A forma como se foi processando a evolução das espécies, nomeadamente a espécie humana, foi então necessariamente natural.
Não se descura neste raciocínio o pensamento livre, o desenvolvimento critico, a livre tomada de decisões, mas o que se defende é que esse mesmo pensamento que é característico (apenas) do ser humano, é produto da sua biologia, e, por isso, ele não pode fugir ao que é.
Assim sendo, como pode o homem promover o Carpe Diem, a anulação do pensamento, defendendo que será essa promoção do hedonismo, o caminho para a felicidade? A defesa desse ponto de vista descura a própria condição humana, por um lado, e reafirma-a, por outro. Ou seja, defende a procura da acção e da satisfação dos sentidos, descuidando que, ao mesmo tempo, afirma que o homem está a ser crítico na procura da felicidade, ou seja, está a observar e a criticar os seus próprios actos, confirmando o Eu consciente e não só o que sente automaticamente. Logo, defende explicitamente o que não tem fundamento, e defente implicitamente o que rejeita na acção.
Porque um precisa sempre do outro, e nunca se pode anular o que somos.

Nefelibata

Não demores, que é exasperante
Se é para te ter às postas, que te não tenha de todo.
Vem ou vai-te e eu não me afligirei mais.
Mas não venhas nem vás, porque atroz é o hedonismo que se fica
Apenas pela aparência.





Vida inha

O homem não pode ser só bom, não pode ser totalmente bom e simultaneamente desprovido de maldade. Não se dá, aqui, primazia ao facto de não conseguir, porque não tem sequer essa possibilidade. E isto acontece, porque não existe bem sem mal.
Eu só me auto-qualifico como possuidora de faculdades virtuosas se tiver consciência de que possuo paralelamente qualidades contrárias às que estarei a considerar, qualidades maldosas.
Segundo esta lógica, o herói é aquele que vence a tendência para o mal, nos escabrosos conflitos que se estabelecem, sendo esses dois pólos – o do bem e o do mal – forças que se afastam brutalmente uma da outra, e é por isso que a que é aparente é tão vincada e o indivíduo é visto como uma “personagem tipo”. Assim, quem está “de fora”, quem tem acesso apenas ao aparente dessa personagem, não consegue alcançar superficialmente o mal que lhe despoletou o potencial heróico.
É esse mal que provoca, que desperta, que acorda o lado mais sensível do homem, porque é o que se torna urgente, é isso que responde ao estímulo que se lhe dá. Esse sensível é o ser, e é, consequentemente, o que há de mais intenso, porque partiu-se do superficial – as forças menos intensas com que o homem responde aos estímulos também pouco intensos - para o mais profundo – a essência que urge em ser manifestada quando se lhe é pedida que responda.
O que acontece, então, se o homem vive toda a vida desprovido desse mesmo mal estimulante? Primeiro, o homem nunca está desprovido de mal, porque, primeiro é homem, imperfeito, crescendo partindo da tentativa ao erro, ao medo, enfim ao mal; e depois, sendo um ser pensante, o homem não pode ser um ser agnóstico e ao formar juízos de valor sobre tudo, formula imediatamente as noções de bem e mal que se tornam (implícitas?) nas suas escolhas, no seu livre arbítrio e em si mesmo. Agora, quão mau é não termos o mal suficientemente marcado na nossa vida de modo a permitir que o bem também o não esteja? Depende do que interpretemos por mal – o que é, que intensidade tem, de onde vem. Se encararmos que o mal está efectivamente pouco presente, então isso talvez signifique que a nossa vida não passa de uma inha. É uma vidinha, com uma certa intensidadezinha, onde predomina a ataraxia e a palavra-chave é o culto do ócio, ou seja, não a procura de soluções para o mal – onde se desenvolvem o amadurecimento emocional, intelectual, enfim, pessoal e humano – mas sim a procura de “passatempos” – e entenda-se aqui o mais desprezível e apático da palavra.

Arte, Compreensão, Explicação, Pensamento, Criação

Talvez que o prazer da chamada glória seja necessária ao artista e portanto à arte (…) e portanto à continuação da espécie (Ferreira, 1992), à continuação do homem crítico e pensante.
O homem gosta de si dependendo do que os outros gostam, dos juízos de valor que criam de si. Assim, se não existissem os outros, não existiria o gostar / não gostar, e, assim sendo, não existiria o gosto por si próprio. Contudo, existe uma diferença entre o outro e o sujeito que faz com que o sujeito seja único: o “gostar de mim no outro” não é profundo nem crítico como o “gostar de mim em mim”, porque o primeiro é apenas um estímulo que suscita, que “acende” o segundo, que é o potencial, o ser que se descobre. Por isso, precisamos dos outros para nos conhecermos, mas esse é um conhecimento consciencializado, pensado, não essencial.
Assim, ao criar a arte, o escritor, mesmo que não queira, criá-la-á para que os outros a vejam, para que os outros gostem ou não do que julgam, ou seja, para que o próprio autor se reavalie com base nos outros. Consequentemente, o autor sentirá vergonha de si, pois tudo o que faz vai de encontro ao que os outros são, e o Eu passa a ser o Outro. Para Vergílio Ferreira, não existe arte sem a sua publicação, mesmo que essa publicação seja apenas psicológica.
Toda a obra de arte é uma transcendência sensível ou emotiva do real. Todo o pensamento transcende o real e esse é o domínio da filosofia. Mas a emoção que sobejasse entraria logo na arte. (pag.63) Assim, a Arte é o que permite ao mundo real receber o vago. Não é sinónimo de “expressão”, porque a expressão não permite a união entre o material e o imaterial que cria uma síntese criativa, um novo novo, o conhecimento enquanto sentir e enquanto razão por parte do “receptor” que transcende o limitado.
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Análise de alguns conceitos primários/centrais em Ferreira V., Pensar

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Adiamento



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,

O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...




Álvaro de Campos





O cigarro permite a pausa da metafísica. A pausa.



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos - Tabacaria

15.01.1928

sábado, 20 de junho de 2009

No séc. XIII já se pensava...


Para Pedro Hispano, a alma [ou mente] situar-se-ia no centro do mundo cognoscível, em busca activa da contemplação da forma pura e do primeiro ser (Deus) da análise do mundo exterior e, o que é uma novidade interessante, em contemplação de si própria. (Saraiva, 2009)

1º primazia do sentir primário, das sensações elementares, da sinestesia = a priori/forma individual e única do sentir + ambiente, estímulos sensoriais;
2º consciência do que se sente, racionalização;
3º procura do sentimento puro que se teve para o conhecer e para se conhecer, procura da estimulação sensorial para a auto-crítica. E é nesta 3ª fase que está o verdadeiro Eu, aquele que é o observador do Eu primário (1ª fase). É aquele que resulta dos fenómenos mentais, o que toma consciencia de quem é e de quem escolhe ser, porque tem livre arbítrio e não se resume à procura da satisfação das necessidades mais básicas. É, então, um observador activo, que se auto-constroi com base na sua própria moral (a individual) que se direcciona não só para si mesmo (se não não a teria, porque seria o Eu infantil), mas também para o outro.
E é por isso que nos conhecemos na relação com o outro, com o que se torna o nosso espelho - nao por sermos o outro, mas por sermos nós na relação com ele e com nós próprios.


segunda-feira, 15 de junho de 2009

Rio e Rio não podem ser a mesma palavra, totós

Porque se assim for, se tu e eu tivermos a mesma carapaça, então seremos o mesmo homem.

PS.: Hobbes queria ser igual a nós

A prova de que Matemática não tem lógica

.
Homem - Corpo = Tudo
.

domingo, 14 de junho de 2009

Bandido:
— Será pior que o meu desespero?
Pandilhas:
— Não é com certeza. Porque o teu não o sinto eu.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sinestesia a posteriori

S e n t i r soa a um SSSS mudo e a um iiii grave e baixinho. Sentir depois de sentir sabe a arrepio de olhos fechados, daqueles mesmo só de olhos fechados.


Cheira-se, toca-se, vê-se, ouve-se talvez - tudo ao mesmo tempo.


Não tem tempo, porque não se conta; e se tivesse espaço, eu estaria sempre.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Quando eu sonho, tu sonhas comigo


Quando eu sonho, tu sonhas comigo. Quando eu amo, tu amas comigo. Quando tu amas, ensinas-me a amar. Eu sonho, tu realizas. Quando eu sinto, comunicamos os dois, mudos e calados, como as duas mãos côncavas – mas diferentes - que me mostraste. O quando de que falo é o presente que se tem, mas que se não mais repete.
Admiras-me da mesma forma que me vou admirando ao passo que me vou conhecendo. Contudo, antes de me criar, já tu me admiravas desse lado, de dentro da janela; antes de eu me conhecer já tu me conhecias.
E de ti, o que te conheço é o que descubro que em mim é possível de sentir.

sábado, 6 de junho de 2009

Aí mesmo, não procures


Não me toques


Fecho os olhos e fico um bocadinho para me assegurar que ainda estás aí.
-Estou.
Que coisa, que bem que sabe trazer-te.

Não me toques.
"É sempre mais fácil um homem perdoar àquele que o iludiu do que àquele que lhe desfez a ilusão."O belo que se tem começa a apagar-se nesse tê-lo" VFerreira
O teu nós és tu e o meu nós sou eu. O que é além de nós não existe, muito menos o que está entre nós.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Procuro o invisível e encontro coisa nenhuma

Conscientemente procuro a homeostase, procuro acreditar que é o que também o meu Eu procura, de modo a tranquilizar o meu ser.
Contudo, ao procurar conscientemente o equilíbrio, ao procurar a segurança interna com razão para essa procura, verifico que não posso ter motivo, razão para procurar o equilibrio e, ao mesmo tempo, o objectivo final do equilíbrio, do sossego, da não inquietação do espírito, da irracionalidade enquanto uma não-procura do porquê dos fenómenos.
Assim, verifico que o que realmente busco - sem supostamente saber que o faço - é a heterostasia, o aumento da tensão, o caminho para o auto-conhecimento, através da estimulação dos sentidos, procurando o invisível e encontrando coisa nenhuma.
.
Porque o que, afinal, procuro é a coisa em si e isso nao é conhecivel.

domingo, 24 de maio de 2009

Não me perguntes se acredito


Não me perguntes se acredito
Em tudo o que digo.
Se houver alguma contradição,
Toma por bem a tua própria razão.

Não temas por desconfiar do que
Os teus olhos tomam por bonito,
Por certo e genuíno, porque
Não deixa de estar escondido.

L i v r e, aquele que não tem
Ideias prévias de ninguém,
Que é prisioneiro da moral dos outros,
Pois a sua foi com os porcos.

sábado, 23 de maio de 2009

Aqui-ali


Gosto do Outono apenas quando me lembra
De viver o Verão.
No Outono vive o Verão sem corpo.
A realidade torna-se mito. E o mito é em vão.
Mas não gosto do Outono para viver o Outono, é pena
Ser demorado e moroso como um morto.

Gosto do Inverno apenas quando
Sinto que precipita a Primavera.
O mito torna-se realidade, antecipando
A minha espera.
Mas não gosto do Inverno para viver o Inverno,
Porque me esquece que há Primavera.

O Outono lembra.
O Inverno esquece.
A Primavera sopra.
O Verão desaparece.

Mas quem sabe o que é evocar
É porque também sabe o que é esquecer
E o que sopra promete passar
E desaparecer.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Mesmo fútil a vaidade não é inútil


Para quê livrar-me da vaidade que apavora o que me é a priori às palavras, esse postiço essencial na escrita o que permite, se quiser, não seguir as regras de ninguém senão as que não são o eco de ninguém, que é para isso que foi inventada?
Se não sou livre aqui, a culpa é tua, porque me estás a ler porque te estás a impor. A culpa é tua, a culpa é tua!
Mas a escrita sem vaidade fica-se-me vazia e eu sem vontade de procurar o porquê de a vaidade querer aplauso. Logo, fico com vontade mentirosa de dormir. Já está a aparecer o sono. Boa noite. ´É assim que acaba. Acabou.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O Homem acredita ser comunicável



A comunicação é a capacidade de entendimento através da troca de informação involuntária, em que quem se expressa fá-lo de forma involuntária, pois não está preparado nem tem o objectivo, a intenção de se expressar da forma que o fez. Quanto ao receptor, recebe a informação através dos órgãos sensoriais que são despertos inconscientemente, e não através dos que são facilmente manipulados pela vontade.
A esta capacidade de entendimento atribuo a palavra comunicação.

Esta pode ou não ser correspondida:
Enquanto transmissores, podemos ou não ter a capacidade de enviar estímulos que consigam penetrar no receptor. Se estamos a faze-lo de modo voluntário sabemos que estamos a ser comunicáveis, logo deixamos de o ser, tendo em conta sempre que a verdadeira comunicação é a transmissão daquilo que efectivamente somos e não a transmissão daquilo que somos efectivamente.
Enquanto receptores, podemos ou não conseguir perceber o outro ou a situação que decorre na sua verdadeira essência, mas, mesmo que o tenhamos sentido, nunca saberemos se o entendemos, porque não podemos confiar na relação reciproca entre o que sentimos e o que o outro sente – a concordância entre ambos depende da verdade em si de cada um, que deve ocorrer nos mesmos milésimos de segundos.

Dois sujeitos só estão em plena sintonia quando se conhecem enquanto sentimentos, sem que se procurem conhecer.

Mais fazia Nabucodonosor dormindo, que acordado



Faço mais a dormir que acordada.

Acordada governo quimericamente o corpo rotineiro que me domina.
A dormir, governo o liberal do meu espírito que também me domina, mas que, pelo contrário, não me importo.


domingo, 26 de abril de 2009


Nunca desapontei ninguém, porque nunca ninguém esperou nada de mim senão eu.


-Não me ames.
-Porquê?
-Porque te amo.

Ser vs Saber


O belo que se tem começa a apagar-se nesse tê-lo. A beleza é do imaginário e a imaginação é uma forma de se possuir o que não se possui. (...)Tudo cansa excepto o cansaço, que é o limite desse tudo. Não podemos ser glutões de seja o que for, porque o seu fim está no enjoo ou no vómito que se segue.

Vergílio Ferreira

Quando se é belo, não se pode ser belo se não houver ninguém a saber que aquele o está a ser ou quando, por outro lado, toma consciência que o é.

Quando a primeira acontece, estúpido é aquele que belo é, porque não sabe que o é. Mas triste é aquele que o contempla, porque, apesar da virtude de ter a noção de belo, ele ama.

Quando a ultima acontece, quando se toma consciência do que se está a ser, então deixa-se de o ser.
Preferia não saber o que faço, fazendo-o bem.
Invejo as plantas, que vivem simplesmente sem grande alvoroço, sem grande rebuliço, que vivem simplesmente, sem pressa de serem. Tão ingénuas, tão estúpidas, tão belas.
O que importa não se saber que se é belo? Se soubessem, não o seriam.



Livre livre sou eu


Descobri que não sou livre porque quero mas porque me deixam ser Logo não quero porque não posso querer para não deixar de ser [o que quero] e como sou livre e faço o que não quero escrevo livremente sem querer saber o que interpretam os que querem ler Livre livre sou eu que fora do sitio sem lugar nem tempo que acolhe o que penso não sou nada senão os outros e pensas tu que não e não te dão razão porque querem que sejas livre

Gosto de me ver




Gosto de me ver, mesmo não tendo prazer nisso.
Gosto de desprevenidamente me apreciar, porque me amo sem saber que sou eu a pessoa que amo. Passo a ser o outro que não existe, o melhor observador, o maior admirador, o mais apaixonado, mas só até ter consciência de que sou eu que observo, que amo.

A consciência não bate à porta, como as percepções que a antecedem; mas, ao contrário, não é bem vinda. E é gorda, não permite lugar para mais nada senão para a sua própria função: pensar.

sábado, 25 de abril de 2009

Tic Tac Tic Bum



O tempo é aquilo que me cria ansiedade, que me faz deixar de ser quem sou e goza com o que não fui. O tempo é coisa minha, criada na mais ingénua fase da minha vida.
Suicida, porque já consciente, aperto o meu pulso ao relógio e prossigo.
Tento enganar quem?

De passagem




Este vento, que entra de fininho a deslizar-se-me na pele, pelo fundo das costas, e sai, arranhando suavemente o pescoço, toca e provoca sem se deixar apanhar.
Sem som, sem cheiro, sem corpo, vai-se embora, despede-se na camisa e deixa-me novamente sozinha, tonta, à espera da próxima vez que a brisa se pavoneie nas minhas costas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

O velho

No fim, ganho consciência do quão velho estou e só me resta uma intensa mistura entre saudade, tristeza e perda, que me permite observar hoje o que julguei não ser prioritário ontem.
Resta-me viver, apenas, cada minuto de forma abstracta e tentando transmitir o que sei a quem tenha ouvidos com melhor qualidade que os meus.
Estou um velho, amargurado com o que fiz da vida e cansado de permanecer com os olhos (só agora) conscientes.
Estou a cegar de uma vista, mas nem assim ofusco daquela que, mesmo na escuridão, me alumia os fantasmas do meu passado supostamente apagado pela arrogância.


Os músculos estão fracos, os ossos esburacados, os olhos cansados. Mas o meu castigo é a teimosia da nova lucidez do cérebro e, pior, do meu coração em não descansar.





segunda-feira, 20 de abril de 2009

Red line

Tem de haver um equilíbrio.
A curiosidade não deve ser ilimitada.
O envolvimento, a sensibilidade devem ser travados.
É preciso conhecer o limite, Avançando.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Interpretação vs Liberdade



Se o mundo é matéria e nós o interpretamos, porque raio existe ética?
A resposta está na propriedade privada. O Homem pensa, julgando possuir as ideias, que são dadas como adquiridas - encontradas ou criadas - mas exclusivamente suas. Assim, vai impo-las aos outros, de forma arbitrária, em prol da sua dominância sobre o outro.
O homem precisa desse sentimento de superioridade. É através da superioridade que procura a tranquilidade. Mas trata-se da tranquilidade superficial, a contorno do medo, a santa ignorância que lhe dá o grande poder de não ver o que não quer. E, uma vez que deposita no outro a análise, a crítica (maioritariamente negativa) de si de forma não consciente, o Outro torna-se no espelho do seu próprio Eu, como resultado do medo de confrontar-se.

O culto da ignorância faz com que sejamos os outros toda a vida. O culto do ócio mental faz com que mecanicamente nos tornemos meros números; coisas que nascem, obedecem e morrem. Não que tenhamos poder de ir contra as leis do Universo (apesar de ser esta a sensação que o ser humano procura e finge ter, ignorando o seu próprio medo e agindo, ao mesmo tempo contra ele), mas temos o potencial suficiente para podermos ser.

Para compreender a existência humana temos de compreender primeiro o a priori - a Mente - e só depois ouvir, mas de forma crítica, o que nos rodeia.

Assim, a acção é correcta, obedece à ética, dependendo de quem a pratica.
Não existe ética nem moral sem a existência do Homem, do pensamento.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Ouve-te


Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria. Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és. Nada te mude.
Teu intimo destino involuntário
Cumpre alto
.
Sê teu filho.


Ricardo Reis, Poesia


quinta-feira, 9 de abril de 2009

Eu possuo-o porque lhe dou utilidade



- Eu, se possuo um lenço, posso colocá-lo em torno do pescoço e levá-lo comigo. Se possuo uma flor, posso colher a flor e levá-la comigo. Mas tu não podes colher as estrelas.
- Não. Mas eu posso colocá-las no banco.
- Que quer dizer isto?
- Isso quer dizer que eu escrevo num papelzinho o número das minhas estrelas. Depois tranco o papel à chave numa gaveta.
- Só isto?
- E basta...
É divertido, pensou o principezinho. É bastante poético. Mas não é muito sério.
O principezinho tinha, sobre as coisas sérias, ideias muito diversas das ideias das pessoas grandes.
- Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe. É útil para os meus vulcões, é útil para a minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas...
O Principezinho, Saint-Exupéry

Eu possuo porque é útil para as coisas que possuo que as possua. Se sou possuída por alguém é porque me é útil que seja possuída; Se possuo algo ou alguém é porque lhe é útil que a/o possua.
Como é que eu posso possuir algo se não lhe é útil que o possua? Se assim é, não o possuo. Não basta eu querer possuir.
Tudo o que adquiro ou vou adquirir vai precisar de cuidados, de manutenção, de utilização. Senão, deixa de ser meu, ou seja, ou passa a ser de outro alguém ou morre. Se for um ser não vivo morre temporariamente até que outro ser o possua como se fosse novo, tendo um renascer. Mas os seres vivos não têm renascer, não voltam a pertencer quando deixam de o fazer; são irremediáveis.
Quando acho um tesouro primeiro, ele não é meu, apesar de me ensinarem o contrário. O tesouro é de quem lhe é útil. É o tesouro que decide ser ou não eu o seu dono, eu não tenho escolha sobre a posse de nada. Se assim é, poderia inferir que é o tesouro que me possui e não eu que possuo o tesouro, certo? Não. A questão é, por um lado, quem controla/decide se é possuído e, por outro lado, quem é controlado e possui. Contudo, as estrelas não escolhem quem as possui, quem ou o quê que lhes é útil. Serão elas autónomas e independentes de tudo; não precisam de nada/ninguém e não pertencem a nada/ninguém? Não, senão não existiriam. Ou existirão elas apenas para possuírem? É possível existir só com uma das duas funções? Se assim for, eu sou possuída pelas estrelas e elas são-me úteis porque sim.
E quanto aos meus pensamentos e ideias, são eles possuidores, como as estrelas, ou possuídos por mim? Ou seja, possuem-me porque me são úteis ou possuo-os porque lhes sou útil? Ambas. Se não houvesse a primeira opção, eu não seria um ser humano; se não houvesse a segunda, não haveria evolução. Tudo depende de tudo, tudo está complexamente interligado, e tudo faz sentido, segundo as leis do universo.
Assim, a questão é “Eu possuo, porque dou utilidade ao objecto em minha posse” e não “Eu dou utilidade ao objecto, porque possuo”. Isto, porque eu, enquanto proprietária, não posso querer possuir sem pensar em dar manutenção, utilidade ao que possuo; sem pensar em amar o que possuo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

O mundo

O mundo, ó alma cansada,
É uma porta a b e r t a, por onde
Se vê, logo defronte,
Uma outra porta, fechada.

Fernando Pessoa, Poesia

terça-feira, 7 de abril de 2009

Insónia

A insónia é o castigo dos cobardes.
Ser cobarde é ansiar o próximo adormecer.
Ser ousado é ansiar o próximo acordar.
Ser ninguém é não ansiar. (Não desejar é conhecer)
Viver dias e noites é o castigo de ninguém.
Os castigos do ousado prometem continuamente o seu bem-estar.

Estúpidos animais estúpidos


Os animais, felizes inconscientes
Que para morrer vivem,
São invejados pelos (im)pacientes,
Infelizes, que mortos sobrevivem.





Tu, que subestimas


Tu, que subestimas, fazes bem
Pensar coisa nenhuma de todas as coisas.
Nem eu sou capaz de o fazer
Nem tu pensas essas coisas.





Sejam rebeldes


Sejam rebeldes,
Pensamentos v ã o s, que
Para nada servem
Senão para serem prisioneiros de mim mesma.

terça-feira, 31 de março de 2009

Tenho Tudo


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Alvaro de campos

A Arte

Não procuro a essência verdadeira, mas a verdadeira essência das coisas.
Depois disso, procuro a verdade essencial, a permanente, a que não tem espaço nem tempo, a eterna, a que não é contada.
O real é o que existe de verdade, o que não é imaginário, ilusório, utópico, fantasioso, aparente, enganador.
Assim, a imaginação é um mero embuste, algo que não existe verdadeiramente enquanto matéria.
Pode, contudo, existir de facto quando a complexidade conceptual da mente, que lhe dá forma abstracta, é reproduzida e representada para o mundo real. A esse parto, a essas reproduções que descem ao mundo, damos o nome de Arte. No entanto, apesar da sua presença no mundo real, a Arte não existe realmente; pois apesar do espaço ser determinado, a sua presença não é figurada.
Isto acontece porque a Arte é uma forma de união entre a verdade abstracta e a verdade efectiva, permitindo ao mundo real receber o vago. Permite a reunião entre a verdadeira essência e a essência verdadeira.
O resultado dessa união é uma síntese criativa, um novo novo que é criado com a intenção de ser transmitido e, por isso, é novo e diferente do seu progenitor.

A dor lida não é igual à dor sentida nem à dor escrita. Em qual está a verdade?

Não existe arte nua.

A arte só existe se o homem existir,
Nunca é desprovida de juízos de valor.
A criação de Deus é o universo;
A do homem é o já criado e ainda não descoberto.

Na criação do homem.





"(...)sem adversidade o ser humano não poderia melhorar."

Nem precisaria, pois sem pecados o ser humano seria perfeito, logo não precisaria de se aperfeiçoar. Contudo, como ser Homem é ser pecador, imperfeito, inacabado, incompleto; ser Homem é ao mesmo tempo ser lutador, guerreiro contra si mesmo, contra o pecado, o mal que transporta consigo; procurando a sua origem, o bem, o que antecede o mal e o que sucede a esperança, o sucesso, o parto, o renascimento, o 5º Império. O sucesso é aquilo que vem depois da esperança, o que sucede, o que nasce (de novo).
Mas, se o homem luta contra o pecado, contra o mal e se a esperança só existe se o mal existe, então a esperança não deve acabar nunca para o sucesso não acabar nunca, apesar de nunca ter existido realmente enquanto “aquilo que sucede a esperança”.
Se assim é, então a luta, o conflito não tem fim. E este é o conhecimento, este é o nada, aquilo que não pode ser revelado, aquilo que não pode ser antecipado, aquilo que Prometeu ainda conseguiu que não escapasse quando fechou a caixa de Pandora e fechado ficou o mal que acaba com a esperança - a antecipação do conhecimento.
Então, uma vez que ao homem foi-lhe oferecido o fogo, o desejo de conhecimento, a força de lutar; o que faz ele se descobre o nada, se descobre que o conflito não acaba nunca?



O homem possui a capacidade de conhecer o luminoso partindo da sombra, e, assim, conhecendo o nada, tudo ele conhece.


domingo, 29 de março de 2009

A névoa

Há entre mim e o mundo uma névoa que impede que eu veja as cousas como verdadeiramente são - como são para os outros.
Sinto isso.

Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal

terça-feira, 24 de março de 2009

Retiro vs Ataraxia

Antigamente conversava-se mais, reflectia-se mais, havia tempo exclusivo para pensar.
Hoje fala-se mais, corre-se mais, temos mais velocidade, mais pressa, mais urgência de coisa nenhuma.
Amanhã teremos mais pernas e mais longas.

Mente = espírito = alma = ser

Se a mente não tem lugar no cérebro, então se nos fizessem um transplante de cérebro continuaríamos a ter a mesma mente, o mesmo ser?

segunda-feira, 23 de março de 2009

Paixão é o que sinto


Quando o coração pára, tudo pára. Dr Sousa Martins


Caleidoscópio

O meu mundo sou Eu
Só vejo o que quero e o que quero deixa-me os fluxos a circular em flecha.
Tenho um olho fechado e o outro vidrado no caleidoscópio onde colo imagens dos meus sonhos mais coloridos. Mas de tão inquietantes não cabem na lente, miúda, e fecho os olhos para ver melhor.
Mas brilham tanto que não deixam ver os contornos. Ainda.

Deixou-me muda e apaixonada

Existe viver sem loucura?

Existe: (sobre)viver.

domingo, 15 de março de 2009

O Quase

Só desejo o que não tenho.
Mas não desejo ter, apesar de não ter, porque tenho a ilusão que tenho. O que desejo é conhecer.
O desejo é-me tudo e o conhecimento nada.
Sonho com o que me é impossível.
Quero descobrir o caminho que não precisa de técnicas nem ferramentas para ser caminhado.

As baratas vão ficando


Só as baratas vão ficando. São muitas, sozinhas em grupos, escravas da carapaça umas das outras. Bonitas, mas sujas e baças.
Se olho para o fundo, procuram indiscretamente o que os meus olhos vêm, sem êxito.
Eu vou-me embora e elas ficam, baças, à procura de mais baratas.


sexta-feira, 6 de março de 2009

Espelho - 1

Estou só.
Sou só.
Afugento também o meu Eu.
Ele fica só, mas a verdade também.
E eu sinto-me bem.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Alívio temporário


A desorganização interna pela qual a pessoa esteja a passar é compensada por uma necessidade de organização e controlo exteriores.
Obsessão-compulsão, Ana Rita Dias

Existe uma necessidade interna que se vai manifestar no exterior, no corpo. Ao satisfazer a necessidade externa estou ilusoriamente e temporariamente a satisfazer a necessidade interna.
O facto de a satisfação interna ser ilusória significa que esta não é efectivamente satisfeita através da resposta imediata do individuo, pois a forma como a procurou satisfazer corresponde à forma como a percebeu.
O que vai acontecer é que o facto do indivíduo encarar a necessidade original de forma indirecta, colocando-lhe a máscara da necessidade exterior, e sabendo, contudo, que existe a interior que provoca a secundária, exterior, pode ocultar sempre a necessidade original sem que esta nunca seja verdadeiramente satisfeita e fazendo com que esta provoque continuamente uma série de comportamentos compulsivos que não serão resolvidos nunca enquanto o sujeito não encarar a questão, a causa do seu mal-estar de forma directa e profunda.

E porquê a importância de encarar a necessidade original? Pelo facto de que ela irá sempre existir de forma abstracta até o sujeito conseguir uma resposta satisfória; irá sempre marcar a sua presença através das necessidades exteriores como um fantasma que desassossega a mente, que lhe cria estados de ansiedade.

O individuo procura resolver o problema da periferia para o cerne da questão. contudo, como vimos, esta forma acarreta uma insatisfação e um agravamento da situação, pois a solução deve albergar a nossa posição activa, forte, determinada, resolvendo o problema partindo da causa maior, sem a contornar, sem criar teias, mas recorrendo a nós mesmos, ao Eu.

No entanto, não basta possuir consciência activa sobre a nossa inquietação, é necessária dar acção física ao exercício mental, de modo a não criar a angustia daquele a quem faltou a vontade de colocar de forma pragmática a resolução e a procura do equilíbrio.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Deus é bom mas o diabo também não é mau

A natureza é a diferença entre a alma e Deus.
Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possiveis são m u i t o s.


Bernardo Soares

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

T o l o



Ponho a máscara de tolo, a mais conveniente que conheci, a que esconde o reboliço que aqui vai, que encobre o que se enrola e desenrola.
Procuro ser essa máscara também por dentro. Sei, aliás, a forma que me permite sê-la e que só em estados transitórios e descontínuos a cumpro: basta, quando estou às escondidas, seguir aquilo que o actor faz quando entra em cena. É tão fácil…


Estados de equilíbrio são partidas que a mente me prega, formas de brincar ao toca-e-foge que me fazem criar expectativas insustentáveis.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Entre nós há uma janela. Eu estou do lado de dentro


Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.
Pessoa



Amo o optimista, aprecio-lhe todos os passos que dá na vida, o que dela faz, aquilo que em si próprio cria. O optimista é o criador exemplar que deve ser contemplado por todos os que perdem tempo em pensar. Ele, mesmo conhecendo, mesmo vendo, sabe viver simplesmente.
O que resta ao pessimista senão a contemplação do destino de forma morosa? A única coisa que tem é o potencial para renegar a admiração pela acção, o facto de a querer viver. Mas também o próprio potencial tem moleza.
O contemplador é aquele que contempla tudo "na sua íntima substância". Em vigília, p e r d e - s e , esgota-se e volta a adormecer. Sobrevive, gozando insatisfatoriamente a passagem, até ao dia.
Amo o optimista. Não o quero interrogar nem procurar, quero vivê-lo. Quero amá-lo, mas amando-me primeiro.
Contento-me insatisfatoriamente em contemplá-lo.

Entre nós está uma janela e eu estou do lado de dentro.


Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, v a g o s cantos que componho enquanto espero.